Uma vida sem dor: dom ou perigo invisível?
A dor costuma ser vista como algo a ser evitado. No entanto, ela é essencial para a sobrevivência: é um alerta natural de que algo está errado com o corpo. Mas e se esse alarme simplesmente não funcionasse? Pessoas com uma condição genética rara chamada insensibilidade congênita à dor vivem exatamente assim. Elas não sentem dor física, mesmo quando enfrentam fraturas, queimaduras ou doenças graves.
Sem esse sistema de alerta, o corpo torna-se vulnerável a situações perigosas. Isso não significa que essas pessoas são imunes a lesões, apenas que não percebem os sinais que o corpo normalmente emite. E é aí que mora o perigo.
O que é a insensibilidade congênita à dor?
A insensibilidade congênita à dor é uma condição rara, de origem genética, em que a pessoa nasce com uma incapacidade total de sentir dor física. O nome científico mais comum para esse quadro é CIP (Congenital Insensitivity to Pain).
Como ela funciona?
Em pessoas saudáveis, a dor surge quando terminações nervosas (nociceptores) enviam sinais ao cérebro em resposta a um dano físico ou risco potencial. No entanto, quem tem CIP possui mutações em genes como o SCN9A, que afetam os canais de sódio dos nervos sensoriais. Sem a transmissão desses sinais, o cérebro não é informado sobre os danos corporais.
Estudos genéticos mostram que esses canais de sódio são essenciais para o funcionamento dos nervos responsáveis pela dor. Quando alterados, eles deixam de ativar a resposta ao estímulo nocivo, tornando o sistema de alarme biológico ineficaz.
Não sentir dor é perigoso?
Sim. Embora pareça vantajoso, viver sem dor é um risco constante. Veja alguns exemplos:
- Crianças com a condição muitas vezes mordem os próprios lábios ou língua sem perceber.
- Podem fraturar ossos sem notar e continuar caminhando normalmente.
- Feridas ou infecções podem passar despercebidas e evoluir gravemente.
- Não percebem dor em casos de apendicite, ataques cardíacos ou problemas musculares internos.
Além disso, a ausência de dor pode dificultar diagnósticos médicos. Quando o paciente não relata desconforto, condições graves podem ser ignoradas por mais tempo, o que agrava o quadro clínico. A dor é uma ferramenta biológica de proteção. Sem ela, é como dirigir um carro sem painel de controle: não se sabe se o motor está superaquecido, se há falha no freio ou qualquer outro problema.
Casos reais documentados
Um dos casos mais notórios de pessoas que não sentem dor é o de Jo Cameron, uma mulher escocesa cuja história foi documentada em publicações científicas e pela imprensa internacional. Jo viveu décadas sem perceber que era biologicamente diferente: ela não sentia dor física, raramente sentia medo e se recuperava de ferimentos de forma incomumente rápida. Sua condição chamou a atenção de pesquisadores do University College London, que identificaram mutações genéticas únicas nos genes FAAH e FAAH-OUT, ambos relacionados ao sistema endocanabinoide, responsável pela regulação da dor, humor e memória.
A descoberta não só expandiu o conhecimento sobre a insensibilidade à dor, como também abriu caminhos promissores para o desenvolvimento de analgésicos mais eficazes. O caso foi detalhado em 2019 em estudos científicos e amplamente noticiado pela imprensa, como no jornal The Guardian.

Existe tratamento ou cura?
Não existe cura para a CIP. O tratamento consiste em educar os pacientes e suas famílias para identificar sinais físicos de lesões e monitorar continuamente o corpo. Também são usados sensores térmicos, alarmes e rotinas de autoavaliação para minimizar riscos.
Em muitos casos, profissionais de saúde elaboram planos personalizados com fisioterapia, exames regulares e apoio psicológico. Como os pacientes não sentem dor, é preciso ensinar estratégias alternativas para identificar sinais de lesão, como mudanças de cor na pele, inchaços ou perda de função.
Avanços na medicina genética estão investigando formas de editar os genes envolvidos na CIP, com o uso da técnica CRISPR, por exemplo. No entanto, os testes ainda estão em fase experimental.
O que a condição revela sobre o funcionamento da dor?
Estudar pessoas que não sentem dor é fundamental para entender como o sistema nervoso reage a estímulos. As descobertas sobre o gene SCN9A, por exemplo, abriram caminhos para o desenvolvimento de novos analgésicos mais eficazes e com menos efeitos colaterais.
Essa condição também ajuda a medicina a entender os mecanismos da dor crônica, que é o oposto da CIP. Em vez de ausência total da dor, muitos pacientes com doenças neurológicas sofrem com dores constantes e debilitantes. Compreender o que acontece quando a dor está ausente permite encontrar formas mais equilibradas de tratá-la quando está em excesso.
Outras condições associadas à sensação de dor
Nem todas as condições de insensibilidade são genéticas. Alguns distúrbios neurológicos, como neuropatias periféricas, lesões na medula ou doenças autoimunes também podem causar falta de dor. No entanto, nesses casos, a perda é adquirida, não congênita.
Um exemplo extremo é a analgesia congênita com anidrose (CIPA), uma condição ainda mais rara, em que o paciente não sente dor e também não transpira. Isso coloca em risco a regulação da temperatura corporal, levando a episódios de febres perigosas, especialmente em crianças.
Outro exemplo é a hanseníase (lepra), uma doença infecciosa que pode afetar os nervos periféricos e causar perda da sensibilidade, inclusive à dor, quando não tratada adequadamente.

FAQ: perguntas frequentes sobre pessoas que não sentem dor
Pessoas que não sentem dor sofrem com outros sintomas?
Sim. Elas estão mais propensas a sofrerem com ferimentos graves, infecções recorrentes, luxações e problemas ortopédicos, justamente por não perceberem os danos.
Essa condição é hereditária?
Sim. A insensibilidade congênita à dor é causada por mutações genéticas herdadas, geralmente em caráter recessivo, ou seja, ambas as cópias do gene devem estar afetadas.
Quem tem essa condição sente calor ou frio?
Depende do tipo de mutação. Algumas pessoas têm sensibilidade à temperatura preservada; outras, não.
Existe alguma maneira de diagnosticar precocemente?
Sim. Em casos de histórico familiar ou comportamentos incomuns (como não reagir a quedas, queimaduras ou vacinas), exames genéticos podem confirmar a presença da mutação.
Um corpo sem alarme: a ciência da dor revelada pela ausência
A dor, muitas vezes indesejada, é um componente vital da nossa existência. Entender o que acontece quando ela está ausente nos faz valorizar ainda mais os mecanismos complexos do corpo humano. A condição de quem não sente dor revela os limites entre proteção e vulnerabilidade.
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Referências
Nature – An SCN9A channelopathy causes congenital inability to experience pain
Este estudo seminal identificou mutações no gene SCN9A como causa da insensibilidade congênita à dor em famílias do Paquistão.
Fonte: Nature
PubMed Central – Novel SCN9A Missense and In-Frame Deletion Mutations
Pesquisa que descreve novas mutações no gene SCN9A associadas à insensibilidade à dor, ampliando o entendimento sobre a função do canal de sódio NaV1.7.
Fonte: PubMed Central
PubMed – Congenital insensitivity to pain: a novel mutation affecting a U12 intron
Estudo que relata uma mutação inédita afetando o gene SCN9A, contribuindo para a diversidade genética observada na insensibilidade congênita à dor.
Fonte: PubMed
Science Focus – A genetic mutation could help us understand how to stop pain
Artigo que explora como casos de pessoas que não sentem dor, como Jo Cameron, podem oferecer insights para o desenvolvimento de novos analgésicos.
Fonte: Science Focus
British Medical Journal – Infrequent SCN9A mutations in congenital insensitivity to pain and erythromelalgia
Pesquisa que investiga a frequência de mutações no gene SCN9A em pacientes com insensibilidade congênita à dor e eritromelalgia.
Fonte: BMJ
A garota que não sente dor, fome ou cansaço
Fonte: Express
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